Contextualizando a educação brasileira: trajetória recente, situação atual e perspectivas sociopolíticas

por Fernando Luiz Abrucio (FGV–SP) e Lara Simielli (FGV–SP)

A Constituição de 1988 significou uma grande mudança no quadro legal da política educacional brasileira. Pela primeira vez na história, a educação tornou-se efetivamente um direito, de modo que caberia ao Estado garantir, de forma obrigatória, o ensino das crianças de sete a 14 anos. Outros dispositivos constitucionais apontaram a necessidade de ampliar a oferta em todos os níveis e modalidades de ensino, algo que foi reforçado, na década seguinte, pela promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Foi iniciado, assim, um ciclo de transformações inédito no Brasil, pois o país, desde a independência, nunca conseguira colocar a educação no centro da agenda pública. Já tinha havido uma tentativa de mudar esse cenário, com o arrojado e visionário Manifesto dos Pioneiros, de 1932, mas, infelizmente, ele fracassou.

Esse atraso secular, mais evidente quando comparado a nações desenvolvidas e mesmo a vizinhos latino-americanos, dimensiona o tamanho do desafio que o Brasil enfrentou nas últimas duas décadas e meia. Diversos atores sociais e governamentais mobilizaram-se pelo direito à educação e muitas transformações ocorreram. A situação atual demonstra a enorme ampliação da política educacional nesse período, criando um dos maiores e mais complexos sistemas de ensino do mundo.

Em 2013, havia aproximadamente 50 milhões de estudantes matriculados na Educação Básica no Brasil, incluindo os alunos do ensino regular, da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Especial, de acordo com o Censo Escolar (Inep/MEC). A rede pública é responsável por mais de 80% dessas matrículas, principalmente no âmbito municipal. Na Educação Básica, esses alunos estudam em cerca de 200 mil estabelecimentos, com mais de 2 milhões de docentes.

Os números relativos à educação no Brasil vêm apresentando significativas conquistas. Em 2013, 93,6% das crianças e jovens entre quatro e 17 anos estavam matriculados e frequentando a escola, ou já tinham concluído o Ensino Médio – uma taxa de atendimento que vem crescendo ano a ano. As taxas de abandono vêm decaindo, assim como as taxas de distorção idade-série.

Por conta disso, mais alunos estão concluindo os ensinos Fundamental e Médio em comparação com anos anteriores.

Atualmente, o investimento público direto na Educação Básica é de 4,7% do PIB, a maior taxa desde 2000, e o gasto médio por aluno é de R$ 5.495, de acordo com estimativa do Todos pela Educação.

Apesar dos avanços, porém, é importante lembrar que as conquistas ainda estão longe das metas e distantes de um cenário ideal. Com relação ao fluxo, por exemplo, mesmo com a queda nos anos recentes, as taxas de evasão ainda são bastante elevadas nos anos finais do Ensino Fundamental e, principalmente, no Ensino Médio. Ainda há, de acordo com o Observatório do PNE, cerca de 2,9 milhões de crianças e jovens de quatro a 17 anos fora da escola – desse total, cerca de 1,6 milhão são jovens de 15 a 17 anos que deveriam estar no Ensino Médio. Apesar do aumento no número de concluintes, apenas 71,7% dos jovens de 16 anos concluíram o Ensino Fundamental e 54,3% dos jovens de 19 anos concluíram seus estudos em 2013 – no Ensino Médio, a taxa de abandono foi de 8,1%, a mais alta dentre todas as etapas de ensino. Vê-se, assim, que, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a ser percorrido para a universalização do ensino no Brasil.

Se do ponto de vista da cobertura escolar, mesmo com problemas, o Brasil teve avanços inegáveis, em relação à qualidade do ensino os indicadores de desempenho dos alunos não têm tido melhoras significativas, resultando numa situação de quase estagnação num baixo patamar de desempenho.

O desempenho dos alunos nos anos recentes vem apresentando melhoras no Ensino Fundamental, diferentemente do que ocorre no Ensino Médio. Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o desempenho médio no Saeb, de 2005 a 2013, teve um crescimento de 16% em matemática e de 14% em português; nos anos finais, o crescimento, no mesmo período, foi de 4% em matemática e 5% em português. No Ensino Médio, por fim, o desempenho médio permaneceu praticamente estável de 2005 a 2013, como mostram os dados abaixo:

Desempenho dos alunos brasileiros da Educação Básica

É fundamental notar, contudo, que o desempenho médio dos alunos ainda é muito baixo, em todas as etapas. De acordo com estimativa do Todos Pela Educação, que avalia a porcentagem de alunos que aprenderam o conteúdo adequado à série que frequentam, apenas 29% dos alunos concluíram o nono ano com o aprendizado adequado em português e 16% em matemática. O Ensino Médio tem um cenário ainda mais alarmante, principalmente em matemática: apenas 9% dos alunos concluíram o terceiro ano do Ensino Médio com o conhecimento adequado – em português, foram 27% dos alunos.

O Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que agrega os indicadores de fluxo escolar e de médias de desempenho nas avaliações, também revela um cenário preocupante: nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o Ideb foi de 5,2; nos anos finais, de 4,1; e, no Ensino Médio, de 3,7. O objetivo é alcançar seis pontos em 2022, média educacional dos países desenvolvidos.

O baixo desempenho fica ainda mais evidente em comparação a outros países. No PISA 2012 (Programme for International Student Assessment), programa internacional de avaliação comparada aplicado a alunos de 15 anos e coordenado pela OCDE, o Brasil tem desempenho abaixo da média em matemática (entre a 57 e 60ª posição), leitura (entre a 54 e 56ª posição) e ciências (entre a 57ª e 60ª posição) dentre os 65 países avaliados. Apesar de melhorias significativas no desempenho dos alunos de 2003 a 2012, principalmente dentre os alunos com menor rendimento, o Brasil ainda se classifica dentre os países com pior desempenho, abaixo da média da OCDE e de outros países latino-americanos, como Chile e México (OCDE, 2012).

Esses desafios, tanto relativos à universalização quanto à qualidade, afetam principalmente a parcela mais carente da sociedade: os mais pobres, os negros e os indígenas, a população do campo e as crianças com deficiência. É fundamental que a busca da melhoria do ensino leve em conta o princípio da equidade, pois a desigualdade educacional é um legado histórico e ainda uma marca do país. Desse modo, inclusão e qualidade devem andar juntas no campo da educação.

O país vem buscando reverter esse cenário, aprovando importantes medidas nos últimos anos. A aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em 2006, foi um importante passo na busca pela ampliação das vagas e do atendimento na Educação Básica, principalmente na Educação Infantil, que não estava incluída no antigo Fundef.

Em 2008, foi instituído o piso salarial nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica. Apesar de importante conquista, a lei ainda não é adotada em sete estados e é adotada apenas parcialmente em outros 14 estados brasileiros, de acordo com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Ainda no final da década passada, foi aprovada a Emenda 59, que tornou a educação obrigatória para crianças de quatro a 17 anos.

Com relação ao Ensino Superior, a adoção de cotas sociais ou raciais de ingresso, a ampliação das universidades federais e a implementação de programas como o ProUni (Programa Universidade para Todos) e o FIES (Programa de Financiamento Estudantil) foram fundamentais para a ampliação das vagas e o estímulo ao ingresso na educação superior. Por conta dessas políticas e programas, o número de alunos no Ensino Superior praticamente duplicou em cerca de dez anos: passou de 1,2 milhão, em 2001, para mais de 2,2 milhões em 2013.

Em junho de 2014, a aprovação do novo Plano Nacional de Educação (PNE) após mais de três anos de discussão foi uma importante conquista do setor. O PNE aponta para diretrizes, metas e estratégias a serem cumpridas nos próximos dez anos. Para o acompanhamento dessas metas, 21 organizações da sociedade civil e do governo lançaram o Observatório do PNE, com indicadores atualizados sobre cada uma das 20 metas propostas no plano.

Os desafios postos à educação brasileira, no entanto, ainda são imensos. Eles estão vinculados à atratividade da carreira do professor, à qualidade do capital humano presente na política educacional, à construção de um modelo de gestão escolar e de redes bem-sucedido, à cooperação entre os entes federativos, à invenção de uma escola diferente e adaptada ao século XXI, ao maior interesse e mobilização da sociedade e, primordialmente, à opção pela educação como principal mecanismo para reduzir as desigualdades históricas do país e produzir uma sociedade mais justa. Colocados numa perspectiva temporal mais longa, finalizada aqui no ano de 2032, centenário do Manifesto dos Pioneiros, todos esses desafios vão além das questões específicas da educação. É preciso compreender os possíveis cenários sociais e políticos para poder antever minimante as dificuldades e potencialidades que o futuro pode trazer.

Para pensar em elementos para a projeção dos contextos futuros que afetarão a educação, é preciso começar pelo plano sociodemográfico. Atualmente, de acordo com o IBGE, há mais de 201 milhões de brasileiros. É uma população majoritariamente urbana (taxa de urbanização de 85% em 2013), que vive predominantemente nas regiões Sudeste e Nordeste (42% e 28% da população, respectivamente).

Do total da população, há, atualmente, 31% de crianças e jovens de zero a 19 anos – uma proporção que vem decaindo nos últimos anos. A pirâmide demográfica no Brasil tem se tornado mais estreita, resultado direto da diminuição das taxas de natalidade e fecundidade nos últimos anos: a taxa de fecundidade total passou de 2,39 filhos por mulher em 2000 para 1,77 em 2013.

Por outro lado, há um aumento da população idosa, alargando o topo da pirâmide em comparação a décadas anteriores. Se em 1999 a população idosa (70 ou mais anos de idade) representava 3,9% da população, em 2013 esse percentual cresceu para 5,8%, de acordo com o IBGE. A melhoria das condições de vida no país tem possibilitado que uma criança que nasça hoje tenha uma esperança de vida de 75 anos de idade; se for menina, a expectativa é ainda maior, alcançando 78,5 anos.

A queda da taxa de natalidade e o aumento da esperança de vida estão relacionados ao aumento do nível de escolaridade das mulheres e à entrada da mulher no mercado de trabalho, dentre inúmeros outros fatores. Nos últimos anos, foram as mulheres que contribuíram mais fortemente para o incremento da população ocupada no país. Apesar desse aumento, porém, as mulheres ainda têm maior representação nos empregos informais e no contingente de desocupados no Brasil.

O avanço da escolaridade, porém, não tem sido suficiente para reduzir o quadro de desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Os dados indicam que, quanto maior for a escolaridade, maior a disparidade por gênero: entre os menos escolarizados, o rendimento-hora das mulheres equivalia a 81% do rendimento dos homens com a mesma escolaridade; entre os mais escolarizados, esse percentual caía para 66%, de acordo com o IBGE.

É notório que houve melhoria na qualidade de vida da população brasileira nos anos recentes. O crescimento econômico aliado a medidas para diminuir a desigualdade de renda, impulsionadas pelo aumento do salário mínimo e pela expansão de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, teve um importante papel nesse sentido. Apesar disso, a desigualdade de renda no país ainda é enorme: de acordo com o IBGE, em 2013, os 10% da população com os maiores rendimentos concentrava 42% da renda total, enquanto a população no outro extremo – os 10% com os menores rendimentos – concentrava apenas 1% da renda total. Ademais, para continuar nessa trajetória, será preciso aperfeiçoar, continuamente, a ação estatal, especialmente no campo da educação, principal alavanca da economia e fonte de redução de desigualdades a médio e longo prazos.

A variável sociodemográfica aponta mudanças no contexto educacional. Projeções indicam que a base da pirâmide deve ficar cada vez menor no Brasil, o que causaria um impacto direto na educação do país. Em 2060, apenas 18% da população terá de zero a 19 anos, enquanto 34% devem ter mais de 60 anos de idade, de acordo com o IBGE. A título de comparação, em 2000, havia 70 milhões de crianças e jovens de zero a 19 anos, que correspondiam a 40% da população; em 2022, a previsão é de uma queda para aproximadamente 60 milhões de crianças e jovens nessa faixa etária (correspondentes a 28% da população total); e, em 2060, de 39 milhões de crianças e jovens nessa mesma faixa (18% da população total).

Nos próximos anos, é possível imaginar duas situações com maior probabilidade de ocorrer: a primeira, em que será mantido o percentual de investimentos em educação em relação ao Produto Interno Bruto (PIB); ou a segunda, caso as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) sejam cumpridas, em que os investimentos irão atingir o patamar de 7% do PIB em 2019 e o equivalente a 10% dele em 2024. Mesmo tendo em conta a mudança da situação sociodemográfica, que reduzirá o tamanho do público a ser atingido, a elevação dos gastos é fundamental porque a qualidade da provisão educacional precisa avançar muito, sobretudo se tomar como base a comparação internacional. Mas não basta ter mais recursos: será fundamental melhorar a gestão da educação.

A situação política tenderá a ser marcada pelo aprofundamento da democracia, em particular, pelo aumento das demandas por melhores serviços públicos. Com o crescimento da escolaridade da população nos últimos 20 anos, somado ao maior acesso à informação e ao maior controle do poder público, a tendência é que a sociedade se mobilize mais para lutar por uma educação melhor. Nos últimos dez anos, pesquisas do Ibope mostram como, paulatinamente, pais cujos filhos estão na escola pública tornaram-se mais rigorosos quanto à qualidade da provisão desses serviços. Tal fenômeno tende a se tornar mais intenso nos próximos anos.

Também é importante notar que tem crescido o número de organizações voltadas à advocacy educacional, e o tema passou a ganhar mais espaço na agenda dos principais formadores de opinião. Essa é outra tendência que se aprofundará nos próximos anos. Os governantes, em comparação ao passado, serão mais cobrados por ações no campo educacional. Na mesma linha, será preciso aperfeiçoar o capital humano presente nas políticas públicas para se dar conta da cobrança crescente.

Entretanto, há visões diferentes sobre a política educacional na sociedade brasileira, algo que tende a continuar, e o grande desafio é como criar consensos básicos não apenas sobre as metas, mas, sobretudo, sobre os meios que deverão ser usados para melhorar a educação. Diante disso, o elemento decisivo no futuro será a construção de capacidades sociais e institucionais de encontrar soluções consensuais dentro de situações de dissenso. A implementação do PNE será o primeiro teste para ver se o Brasil consegue fazer da educação mais do que uma prioridade, tornando-a elemento de aprendizado em prol de uma ação coletiva mais efetiva.


Os dados relativos ao cenário educacional brasileiro foram retirados das seguintes fontes: Censo Escolar (Inep), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Ibope, InepData (Inep), Ideb – Resultados e Metas (Inep), Ministério da Educação (MEC), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), Sinopse Estatística da Educação Básica (Inep), Observatório do PNE, Todos Pela Educação.

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